A revoada de andorinhas

Marcelo Bolzan Lana
2 min readMar 30, 2022

--

Foto: Julian via Unsplash

Jairo fechou a cortina do ônibus para não ver o que deixava para trás: a pracinha, a árvore que o avô plantou no centro dela quando trabalhava na prefeitura, os bancos de cimento com encosto que incomodava hérnias, a antiga banca de revistas e o espaço, hoje vazio, onde Seu Nilson, o velho pipoqueiro, estacionou seu carrinho fazedor de pipocas por décadas.

O ônibus fedia a cachorro molhado, biscoito de polvilho frito e perfume barato, arroz cozido guardado em manteigueira e limo. O calor fazia os cheiros ferverem e impregnarem nas narinas. A luminosidade vinda do sol quente, atravessando a cortina grosseira de cor azul marinho, cansava os olhos. Com eles fechados e a cortina cobrindo o vidro, nada da paisagem poderia ser avistado.

Eis que, então, conseguiu chorar miúdo. A dor ressentida da culpa. De quem falha, mas também é vítima do erro alheio, do acaso. De quem se imputa uma pena possível: a fuga para a solidão, para um lugar distante de todos. Uma agonia comprimindo o peito e abdome, desde a primeira argola do esôfago ao início do intestino. O estômago querendo regurgitar a manga abocanhada sob a sombra da mangueira do quintal. Tudo queimava por dentro.

O senhor da poltrona ao lado perguntou: “tudo bem, seu menino?”. Jairo respondeu que sim, “tudo bem”, acenando com a cabeça e enfiando a cara na cortina como se fosse mergulhar e se esconder naquele universo azul marinho do tecido grosseiro. “Como começou tudo isso?”, pensava. Tinha sido do “nada”? Lembrava de sua imagem refletida no espelho com moldura cravejada de pimentinhas feitas de resina. “Foi do nada, foi de repente”.

Não havia nada. E, como uma revoada de andorinha que surge no céu para defecar sobre nossas cabeças, tudo mudou num instante. Culpa daquele ato falho, que levou para a discussão tola e culminou em um empurrão agressivo. A cabeçada em uma das bolotas de madeira que enfeitam a cama. O som de um pipoco, como se o crânio fosse uma cabaça seca, sem recheio.

De certo, o que houve, senão o nada? Nada. Apenas o nada. Começou assim, de repente, feito a revoada de andorinhas e restou apenas seu lamento, o refluxo estomacal, as fibras da manga madura transformadas em ácido. A lembrança da bolota da cama com potência bélica destruidora de cabaças secas.

A tarde caía quando o ônibus saiu da cidade. Jairo olhou para trás, entre a fresta da janela e da cortina, e viu a ponte sobre o rio pela última vez. Um dos locais onde gostava de brincar com seu irmão, agora caído, inerte, no chão do quarto do barracão. Não há perdão para sua culpa nem cura para sua dor.

Hoje, na pequena cidade de Nossa Senhora do Manto, nasceu um fratricida.

--

--

Marcelo Bolzan Lana

“Distraídos venceremos”. Jornalista, mineiro e pai da Alice.