Adorável invasora

Marcelo Bolzan Lana
3 min readJan 10, 2023

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Imagem: detalhe de foto de Ronan Furuta (via Unsplash)

A pomba fez um ninho. Veio importunar com suas doenças e seus ruídos que soam agourentos. Dizem que a pomba simboliza a paz, mas naquela casa representava infortúnio, mazelas, doenças. Desde a década passada, quando pombos vieram aos bandos e construíram ninhos e moradas no forro da casa de paredes de cor azul lavado pelo tempo e janelas retangulares de madeira, esses animais não eram bem-vindos ali.

A tal pomba de agora, a primeira a voltar depois de anos, surgiu com um raminho de capim no bico e se aproveitou de um buraco feito pelo tempo. Ela tinha olhos alaranjados, corpo cinza e expressão altiva. Parecia saudável, como aqueles tantos outros da década passada que trouxeram a doença que a menina, à época com cinco ou seis anos, decorou por ouvir tanta gente dizer: criptococose. No início, foi difícil guardar e repetir o nome. Então, ela acabou doente e se sentiu na obrigação de falar aquele palavrão com todas as letras bem ditas.

A menina foi a primeira e única a notar a nova pomba rondando, anos depois da expulsão das aves, e construindo o ninho. Se afeiçoou, teve medo de entregar a peste alada aos pais. Ocorreria novamente uma “operação extermínio de pombos” com venenos, massa de cimento para vedar as gretas entre as telhas e destroços dos ninhos jogados no quintal para arderem em fogueiras efêmeras, que tinham a pretensão de esterilizar o ambiente de qualquer doença.

Nem os pais, o avô, as irmãs ou os tios perceberam a intrusa adentrando o forro da casa. Estavam cansados demais da lida ou, no caso das irmãs menores, das brincadeiras pelos barrancos e riachos, acompanhadas por suas tosses alérgicas e catarro escorrendo pelas narinas. Certamente, andavam com a imunidade baixa e seriam vítimas em potencial para a doença de pombo fazer morada.

Os dias passaram e o ninho ganhou forma. A menina pegou a escada feita de bambu, subiu e observou um pouco mais de perto. Os ovos já deveriam estar debaixo das anquinhas quentes da pomba-mãe, toda exuberante, com olhar meigo, maternal, como se tivesse cílios postiços emoldurando os olhos para emprestar alguma doçura e feminilidade à face. A menina se identificou ainda mais e quis protegê-la. Era, talvez, uma questão de sororidade, palavra que ela não conhecia e, caso conhecesse, não saberia explicar se tal valor poderia ser aplicado em seu relacionamento com uma fêmea de uma espécie completamente diferente da sua.

Mesmo com o horror da febre que viveu quando esteve infectada, a menina desejou resguardar aquelas vidas. Levava montinhos de milho em suas mãos e jogava sobre o forro da casa, para alimentar a ave. Ela não via o macho por ali. Pensou que ele pudesse ter abandonado a família ou coisa do tipo. A pomba-mãe era discreta, de poucos ruídos. Seguiu invisível, secretamente salva pela menina que queria permanecer criança, embora sentisse a puberdade lhe cercando.

Em menos de vinte dias, a menina observou, bem sorrateiramente, que o ninho guardava dois pequenos seres vivos, de aspecto meio asqueroso, contrastando com a altivez da mãe. O coração da garota fora tomado por uma sensação de potência, pois ela reconheceu sua capacidade de fazer coisas por conta própria, mesmo sabendo que poderia contrariar a família.

Em mais uma passagem de tempo, os bichinhos voaram. A ave-mãe, com sua incrível capacidade de colocar novos filhotes de pombos no mundo, não tardaria a voltar para uma nova ninhada. De certo, comentaria com sua tropa de pombas e pombos amigos que o forro daquela casa de paredes de azul lavado, cenário de uma matança na década passada, agora era um recanto de paz, segurança e comida fácil.

A menina percebeu que, findo o ciclo da pomba-mãe e seus dois filhotinhos, chegara o momento de proteger sua própria família. Deduziu que a pomba não seria tão grata e poderia abusar de sua cordialidade.

Ela, então, tapou o buraco que a pomba-mãe encontrou para fazer o ninho. Usou uma telinha, gravetos e caquinhos de tijolos. Não daria chances para novos pombos voltarem com suas doenças. Não queria correr o risco de se compadecer com outras pombas-mães protegendo seus ninhos.

E a vida seguiu. Impossibilitada de voltar, a tal pomba, tão protegida em sua última ninhada, em pouco tempo já estava construindo um novo ninho, disputando com corujas e andorinhas um pedacinho da torre da igreja, bem longe do olhar cuidadoso da menina.

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Marcelo Bolzan Lana

“Distraídos venceremos”. Jornalista, mineiro e pai da Alice.