As cores que nela habitam

Marcelo Bolzan Lana
4 min readJul 29, 2021

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Imagem: intervenção em foto de Jéan Béller (via Unsplash)

Prestes a completar oitenta e nove anos e a pintar seu centésimo oitavo quadro, Olga Germana acorda disposta a tentar mais uma vez. Antes do café, vê seus olhos refletirem no espelho algumas fagulhas de incertezas. Uma delas é a dúvida banal entre o batom vermelho, muito chamativo, ou um mais discreto, de aspecto melado, que escorre pelos vincos ao redor da boca.

Decide por nenhum dos dois. Está focada em pintar a imagem que carrega dentro de si desde muito jovem e não se permitirá ouvir qualquer tipo de insegurança. Passa nos lábios, com a ponta do dedo, um pouco do pó acobreado que usa para dourar as maçãs caídas do rosto. Enxerga sua beleza e sua coragem abalável. E sorri.

Resolve fazer valer as possibilidades dos rabiscos, rascunhos, esboços. “Esse caminho do riscar, do esboçar, já é de uma liberdade sem tamanho. Não importa para onde a gente vai!”, diz, zombeteira, olhando seu reflexo gracioso no espelho de moldura cafona, mas de alta carga afetiva. “Gosto do afeto. Não sufoca tanto quanto outros sentimentos, como o amor. Afeto é uma palavra bonita”.

Em suas quadros, dona Olga Germana sempre nadou contra linearidades, simetrias e contornos marcados. Seu receio como artista é parecer repetitiva porque usa sempre a mesma paleta de cores, quase limitadas. “Inseguranças vãs que eu tento calar. Mas é que são sempre as mesmas cores. Desde sempre! Não me canso delas. Só às vezes. Elas é que nunca se cansam de mim”.

Ao longo dos anos, sua obra tornou-se de alto valor decorativo, mas sem qualquer conotação política. Sente que deixa de cumprir um papel ao agir assim, embora saiba que cada uma de suas pinceladas vêm carregadas de revoltas, protestos e força. “Tenho consciência de que o simples trabalho de lixar e preparar uma tela já é um ato político”.

Nunca guardou ou expôs seus esboços. O que não é finalizado ela sempre faz questão de destruir, para que seus pincéis não insistam em transformar aquelas manchas em algo novo.

“É bom defenestrar minha própria arte inacabada. Destruir a tela por completo, com golpes e rasgos. Ou cobrir tudo com espessas camadas de tinta preta sobre o esboço, feito um buraco negro que engole tudo”. Mesmo com o rabisco coberto de preto, Olga ainda costuma rasgar a tela, para que a peça não ouse, um dia, ser uma obra acabada.

“Quisera eu ser livre. Uma artista sem rédeas. Na minha primeira juventude, queria pintar mais cavalos selvagens, ariscos, livres das charretes. Não me deixaram. De lá pra cá, nunca aprendi a reproduzir a liberdade desses bichos.

Notem que meus cavalos aparecem sempre camuflados por arbustos. Acho que sou incapaz de reproduzir tamanha potência desses animais, essa explosão de liberdade e força, embora seja esse meu maior desejo — Olga Germana, Caderno Fim de Semana do jornal Diário A&B, 1983 (ano em que pintou sua quadragésima tela).

Nessa entrevista ao caderno de cultura do falido Diário A&B, Olga estava tensa, fumando muito, tomando chá de camomila e cutucando a costura da poltrona azul petróleo com a unha. “Foi o dia em que pari minha úlcera”, lembra.

Hoje, 38 anos depois, ela amanhece decidida a rascunhar mais alguns cavalos selvagens (sua obsessão de toda uma vida), sem o artifício dos arbustos para encobrir sua incapacidade (segundo sua autocrítica) de imprimir liberdade na curvatura e no movimento dos traçados dos bichos (segundo, ainda, sua autocrítica).

Volta a bater a apreensão, enquanto separa os materiais e prepara a tela. Como se a úlcera, que ela imagina ser uma velha cicatriz porosa em seu estômago, se abrisse, feito morto que mexe no túmulo.

Dona Olga Germana põe as mãos sobre o peito. Respira. O coração salta veloz e descompassado como seus cavalos selvagens assimétricos, rascunhados ao longo dos anos, camuflados por arbustos ou silenciados pelos buracos negros. Bebe um pouco do conhaque. Fuma. Traga forte. Deixa a fumaça arder seus olhos. E, em relação à lágrima que escorre, ela prefere não identificar a origem.

Com quase noventa anos, ainda precisa de certo esforço para calar, a cada pincelada rebelde, as vozes de sua mãe, da madrinha de batismo, da professora de artes, da freira do colégio e da avó materna. Elas ainda estão por ali para julgar e ressaltar pontos a serem aprimorados.

Exigem dela a delicadeza do rococó, das moças de vestidos bordados ao lado de laguinhos com cisnes, pintadas como se as telas fossem porcelanas. Querem princesas com seus pares em uma valsa realista, que só falta emitir som.

Olga sempre quis pintar a moça cavalgando nua, roçando os pelos no lombo de um cavalo arisco, sem arreio. Ou, simplesmente, os cavalos selvagens, de cores irreais, correndo em terras sem donos. Cenas vulgares, pulsantes, longe da sensatez das telas decorativas, das florezinhas pintadas com primor.

Ela então, após quase um século de vida, consegue traçar o cavalo selvagem que nunca saíra de sua mente: a musculatura forte, expressando potência e liberdade, construída por pinceladas desformes, irregulares, marcantes, seguindo a paleta de cores que caracterizam sua obra.

Olga Germana observa sua tela e chora risonha. Enquanto fuma e bebe mais uma dose do conhaque, alterna seu olhar para os dedos manchados de nicotina e tinta, para o copo de bebida e para a sacada repleta de samambaias e avencas. Nota na pele das mãos e dos braços, salpicados pelo tempo, um desarranjo de pontilhados marrons e boninas, além de rugas e manchas azuladas.

Constata que o ocre dos dedos manchados pelo fumo, a cor do conhaque no copo vazado pela luz, a variação marrom-avermelhada das mil pintas da idade e o verde escuro das plantas da sacada são as cores da sua paleta tão característica. Os cavalos selvagens e livres de Olga Germana têm as suas cores, assim como toda sua obra.

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Marcelo Bolzan Lana

“Distraídos venceremos”. Jornalista, mineiro e pai da Alice.