O prisioneiro (ou O homem iluminado)

Marcelo Bolzan Lana
4 min readFeb 14, 2023

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Foto: Rodrigo Souza via Pexels

Um raio de sol quase oculto atravessa o vidro da janela minúscula e empoeirada, fazendo brotar um fino feixe de luz pela fresta. O quarto ainda permanece escuro, fúnebre, com jeito de porão de navio ou estoque de supermercado de épocas em que não havia atuação da vigilância sanitária. Cordas amarradas, bexigas de salame pelo teto, caixas de madeira, estantes vazias, garrafas, baldes. E sempre um ruído atrás das coisas indicando a presença de um roedor faminto.

O calor do filete de sol contrasta com a umidade do cômodo e suas paredes emboloradas. Embora tímido, como vela em ritmo de se apagar, o fio de luz solar causa impacto na sala escura. E o homem, então perdido e solitário naquele quarto, respira com certo alívio e esperança. Há vida do outro lado, para além desse ar pútrido, do habitat de possíveis ratazanas e seus filhotes procurando por comida.

As pupilas do homem se dilatam para se adaptar à nova quantidade de luz que ali adentra. Vê seu corpo de vestimenta maltrapilha umedecida por sua própria urina ou urina dos ratos, e já nem se importa. Ao olhar para suas pernas, reconhece as canelas ainda mais finas, tendo um dos tornozelos preso a uma corrente grossa e escurecida.

Tem muita sede e muita vontade de sair da escuridão, de enxergar uma luz ampla, impactante, aquele tipo de claridade que parece cegar, como em um deserto de areia branca refletindo a luz quente de um sol a pino de verão. O céu claro, sem uma única nuvem. A luz clara rasgando a retina, fazendo os olhos ficarem espremidos até brotarem rugas ao seu redor.

Tem muita sede, vontade de sair da escuridão e muita fome. Mais sede do que fome. Um prato de sopa, mesmo rala, serviria para trazer alguma cor para seu rosto pálido de bochechas cavadas, sem resquícios de vida. Mas preferiria um copo de água fresca para beber em uma talagada generosa, para soltar depois uma onomatopeia típica de quem se refresca ou se farta com algo.

A pequena luz do sol que atravessa a greta da janela empoeirada mostra que os dias de chuva tinham ido embora. Agora é o momento da luz, de deixar entrar na mente algumas possibilidades além do sentimento de derrota, que um dia fora dor, que um dia fora desespero, que um dia fora revolta, que um dia fora medo, medo e muito medo.

Ele se acostumou com todas essas sensações e só gostaria mesmo de se livrar da sede e da fome. E de sair dali. Deseja transformar a esperança, frágil feito fiapo de pano de chão velho, em ação. Fazer essa gana apática se engrandecer a ponto de proporcionar ao seu corpo uma força descomunal para destruir grilhões, portas, janelas e afastar qualquer animal pestilento que cruzar seu caminho.

É dia lá fora e ele quer muito se valer dessa luz enquanto a noite não chega. Ele sabe que, em certas horas, os ruídos de ratos e outras pestes aumentam. Alguns até sobem em suas canelas e ombros. Agora, para manter a calma e pensar, fica assobiando o jingle que abria o programa de meio dia da rádio AM de sua cidade, quando ainda era um menino. Lembra do suco de groselha da sua mãe. Do queijo fincado no garfo e tostado na chama do fogão a gás. Mas não se acalma.

Então, embrenha pelo caminho da ira, que quase se torna palpável. Mesmo fraco, o homem coloca-se de pé e deixa a raiva comandar seus dedos, braços e punhos, empurrando as coisas, arrastando caixas, derrubando prateleiras de aço. Depois, faz silêncio para tentar ouvir os ratos e vê um machado vazando por uma das caixas que caíram abertas.

Enfurecido e decidido, tenta partir a longa corrente usando a ferramenta. Não consegue ter a precisão e a força para tal feito. Anda um pouco, até onde permitem as suas amarras, e segue decidido a transformar a porta de madeira grossa do cômodo em destroços. Novos feixes de luz adentram o cômodo a cada lasca profunda partida na porta pelo machado. Ele mal consegue se adaptar a tanta luz.

Até que surge um talho na porta grande o suficiente para o homem enxergar do outro lado e ver que está dentro de uma arena televisiva, cercado por câmeras e holofotes. Uma explosão de luzes artificiais e uma música apoteótica dão o tom a um apresentador almofadinha, que faz uma saudação ao homem, de forma efusiva e sob aplausos da plateia: “bem-vindo de volta ao game!”.

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Marcelo Bolzan Lana

“Distraídos venceremos”. Jornalista, mineiro e pai da Alice.