O último suspiro do Alvarenga

Marcelo Bolzan Lana
3 min readSep 18, 2020

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Foto: Leonardo Santos via Pexels

Na sala fria, com luminosidade baixa, Alvarenga dá o último suspiro dentro do aquário redondo, de formato clássico. Ao ver o corpo do solitário peixe se afundando no vazio da morte, Túlio Rosemberg da Silva e Silva, o Tulinho, chamado de filhinho da mamãe desde a terceira série, chora lágrimas sinceras de saudades (não do peixe beta, propriamente).

É que vem à memória todo o contexto da chegada de Alvarenga em seu apartamento. “Seu presente de aniversário, ”, disse Ana do Céu, sua então namorada, fazendo voz forçada de dengo. De início, Túlio detestou a surpresa. Depois, se apegou, como se apegava a todas as coisas que Ana deixava espalhadas pelos cômodos.

O casal criou Alvarenga junto, “antes de tudo acontecer”. Fizeram até lista de nomes. Venceu Alvarenga, uma homenagem ao porteiro do prédio. “Tem a mesma cara ranzinza”, argumentou, entre risos, a amada. Nem de longe, Túlio contestaria a sugestão que arrancou uma gargalhada atípica de Ana do Céu, geralmente, amarga e um pouco ranzinza, feito o porteiro.

Até que tudo aconteceu. “Tudo” quer dizer o rompimento. Sem muitas explicações da parte dela. “Já deu, Tulinho. Já deu”, ela decretou. E saiu recolhendo coisas que preencheram os cômodos do apartamento ao longo de dois anos, quatro meses e quatro dias. Ela só deixou para trás o aquário com o Alvarenga.

Com a morte do peixe, não há resquícios de Ana do Céu ali. Não sobrou nenhum fio de cabelo perdido no pente, no ralo, no travesseiro ou nas fendas do sofá. Ana levou embora suas coisas e até o que não era dela. As canecas, as fronhas, a antena portátil. A mantinha bonina, o bibelô do Buda, o cartão postal que ficava colado no espelho do corredor. O espelho do corredor! Aquela peneirinha de separar clara da gema e o pendrive com música erudita.

Com a morte de Alvarenga, foi-se a última lembrança da existência de Ana dentro do apartamento de Túlio Rosemberg. Mas e esse cheiro que vem da cortina, quando o vento sopra, não parece o perfume dela? Mesmo tendo mandado lavar o tecido, é o cheiro dela que continua a morar ali?

“No coração, na alma ou em qualquer outro buraco, as lembranças insistem em não ir”, Tulinho sussurra a frase diante do espelho, tentando não achar piegas falar isso em tom de murmúrio e com os olhos marejados. Ele tem uma certa necessidade de encenar a dor que sente e de se ver em martírio.

O corpinho de Alvarenga é, então, jogado na água limpa do vaso sanitário. O movimento da descarga parece devolver vida às nadadeiras exuberantes. Uma falsa impressão de que o beta acena um adeus com suas “plumas”, como se referia Ana. E Alvarenga some, engolido pelo ronco da privada.

Túlio fecha as janelas. Ele sabe que o cheiro da cortina não passa de uma ilusão. Uma cisma boba, inventada por ele. “Não há mesmo nada dela aqui”. Mas há sim! “O aquário. Ainda resta o aquário”, diz sozinho, três dias depois da morte de Alvarenga.

Túlio segura o recipiente de vidro em suas mãos, enquanto imagina outras formas de usá-lo. Talvez pudesse guardar coisas pequenas ou utilizar para plantar cactos em miniatura. Um raio da lâmpada de LED da sala reflete no vidro. Túlio simula um incômodo nos olhos com o pequeno reflexo. O aquário cai no chão e vira uma porção de cacos. “A partir de hoje, não há mais nada dela aqui, definitivamente”.

Ele se convence de que a queda do aquário não foi proposital, mas um golpe do destino. Ele sabe, em seu íntimo, que o argumento é mais uma de suas ilusões criadas para sustentar suas “certezas”. Agora, Tulinho quer para si uma era sem amarras. “Um tempo livre, de autoconhecimento”, se ilude, em mais um artifício bambo. E, antes de dormir, finge não se impressionar com o perfume de Ana do Céu que parece exalar da cortina, quando o vento sopra.

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Marcelo Bolzan Lana

“Distraídos venceremos”. Jornalista, mineiro e pai da Alice.