Quando as memórias desbotam

Marcelo Bolzan Lana
2 min readJun 21, 2022

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Foto: Matt Artz via Unsplash

O vaso de flor da sala de seu Jacinto amanheceu quebrado. O velho procurou por Sancho, o gato, rogando pragas ao bicho. Logo, ele se lembrou que Sancho tinha morrido. Há quantos anos? Uns doze? Tinha mais tempo, bem mais tempo. Foi quando a casa ainda era cheia de gente e outros gatos circulavam por ali. Chus, Carmen, Sancho e Toni, o quarteto de bichanos, estavam eternizados numa foto de tom azulado, no pequeno álbum deixado no antigo baú de costuras.

Naquela imagem, os quatro gatos rondavam o prato de Olímpio, o neto mais novo de seu Jacinto, que comia asa de frango frita com farinha no chão da sala, assistindo Globo Esporte ou um outro programa sobre futebol na televisão. Era o único registro dos gatos e também um dos poucos de Olímpio.

Tão bonito, forte, de olhar vistoso e cabelos que caíam na testa de um jeito único. Tão saudável o menino Olímpio! Seus dedinhos gordos segurando a asinha de frango, a boca suja de farinha… A preferência por Sancho, ali, logo abaixo do seu braço esquerdo, esperando pelas migalhas de frango e farinha de mandioca que lhe escapavam pelas mãos ou canto da boca.

Hoje, Olímpio, Sancho e os outros gatos representavam só saudade. O coração com marca-passo de seu Jacinto batia lento ao se lembrar do neto, entre os fiapos das memórias que iam e vinham. Moraram sob o mesmo teto por anos, até o garoto ganhar certa independência e destreza e sair pelo mundo atrás de aventuras. Nunca mais voltou nem deu sinais de vida.

As notícias sobre Olímpio chegavam por intermédio do sobrinho-neto Ulisses, um parente insosso, que reportava mal os fatos, facilitando para que fossem rapidamente esquecidos por uma mente de luzes se apagando.

Certa manhã, quando as lembranças de outros tempos não perturbavam tanto, um homem calvo, de bochechas saltadas e barba rala por fazer bateu à porta de seu Jacinto. “Vô, sou eu, o Olímpio”. O avô olhou bem para o rosto desconhecido e respondeu que não tinha neto daquele tamanho. “Olímpio está na sala, comendo frango com farinha e brincando com Sancho”, disse o velho.

Dos olhos arredios do homem calvo brotaram lágrimas abundantes instantaneamente. Tinha certeza que seria, até o fim dos dias do velho, uma criança comendo asa de frango com farinha em uma mente que ia perdendo as cores. A memória do avô se desbotava e sua consciência já não lhe dava discernimento para saber que aquele homem à sua porta, sem cabelos caindo na testa, era a pessoinha que ele mais amou em toda a sua vida.

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Marcelo Bolzan Lana

“Distraídos venceremos”. Jornalista, mineiro e pai da Alice.