Ruptura úmida

Marcelo Bolzan Lana
2 min readMay 5, 2021

--

Imagem: arquivo pessoal

As unhas roídas cavucam com maestria a verruga bem enraizada no joelho esquerdo. Vistosa, rígida, proeminente. Uma companheira civilizada, que quase tornou-se íntima, mas que nunca deixou de ser vista como um corpo estranho, uma intrusa. “Nunca terás vida própria!”.

As unhas roídas afundam nos contornos daquela espécie avantajada de Verruca vulgaris, companheira de passeios, dramas, traumas, rezas e castigos sobre grãos de milho — e poucos amores. “ resistiu a muitos medicamentos e mandingas”. Poderá resistir à insistência de unhas tão astutas?

O ser humano que trabalha na extração da velha invasora é um poço de reminiscências. “Lembra do dia em que desejamos pedir ao pessoal do circo para nos deixar saltar do trapézio? Ou quando você sobreviveu ao nosso tombo na rua de paralelepípedo molhado, quando era pequena e achatada feito uma lantejoula sem brilho?”.

Diante do afinco das unhas, as laterais da verruga começam a se desprender da pele, deixando brotar pequenos sinais da despedida. Um pouco de sangue, talvez. Na verdade, um líquido ralo, quase sem cor. Comprova-se que a verruga não é um sobressalente, uma prótese ou um ser à parte. É parte de um mesmo organismo.

E seguem as unhas roídas a contornar a circunferência da carnuda, evidenciando seus microvasos e suas secreções vitais. Protuberante e forte, parece ter vontade de resistir. “Mas nunca terás vida própria!”.

As unhas roídas param de cavar. A verruga cambaleante, unida por algumas fibras que lembram raízes, está presa entre as unhas do polegar e do indicador, que formam uma pinça disposta ao ato derradeiro. Um golpe violento, preciso, dilacerador. A impressão é que a ruptura provoca um som de causar ojeriza.

Em seu lugar, a verruga deixa uma espécie de cova. Um buraco choroso, um olho d’água. Uma mina por onde brota um sangue espesso e escuro, abundante, que escorre pela perna em linha reta até tocar o chão, com a força de quem grita pela primeira vez ao chegar ao mundo.

--

--

Marcelo Bolzan Lana

“Distraídos venceremos”. Jornalista, mineiro e pai da Alice.